A dificuldade de sair do armário
- Catarina Cunha
- 26 de jan. de 2020
- 10 min de leitura
Atualizado: 25 de jun. de 2021
Portugal em 2010 a legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tornando-se assim o sexto país na Europa e o oitavo no mundo a legalizar o casamento homossexual. Cinco anos mais tarde, a adoção plena por casais do mesmo sexo e em 2018 foi permitido que jovens de 16 anos pudessem mudar o seu nome e género no cartão de cidadão. Tudo parece indicar que Portugal é cada vez mais um país “gay friendly”, no entanto a homofobia ainda é algo bastante presente no quotidiano de uma pessoa LGBT (Lésbica, Gay, Bissexual, Transexual) que não tenha problemas em “sair do armário”.
Sílvia Henriqueto, psicóloga educacional desde 2013, explica que quanto ao processo de aceitação da homossexualidade existem muitos modelos a nível psicológico. O modelo principal é o “coming out” (saída do armário) e pressupões 3 grandes etapas até que a pessoa assuma a sua orientação sexual. No momento inicial dá-se a fase de sensibilização, a pessoa sente uma diferença de si própria perante os outros e por vezes existe mesmo uma não-aceitação, ou seja, a pessoa pensa que é apenas uma fase e que o que sente vai mudar com o tempo. A segunda fase é a da tolerância em que a pessoa afirma a sua identidade sexual em apenas alguns contextos. Por exemplo, entre os amigos a sua homossexualidade já é partilhada, mas no seio familiar ainda é heterossexual, acaba por ser uma “vida dupla”. A última fase é a da integração e aqui já existe uma total aceitação e afirmação da identidade sexual, já é algo natural perante os outros. Deixa de haver constrangimentos e receios, a sua orientação sexual está presente em todos os contextos, houve, portanto, uma total “saída do armário”.
A Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças em 1990, no entanto ainda existem, em 2018, clínicas que a prometem “curar”. Sílvia afirma que a homofobia tem como definição o medo irracional da homossexualidade e que a “explicação da homofobia é nada mais, nada menos, do que o preconceito”. Para a psicologia, os estereótipos levam as pessoas a criar grupos e a rotular os outros com base nas semelhanças que têm entre si.
Letícia ficou 6 meses sem falar com a mãe devido à sua sexualidade
Letícia sempre achou que quem tinha coragem para se assumir, pois, desde cedo percebeu que a homossexualidade era encarada pela sociedade como algo “anormal” ou errado. Percebeu com 15 anos que se sentia atraída por raparigas e confessa que o seu primeiro pensamento quando tomou consciência de que não apenas uma fase foi “Isto não pode estar a acontecer comigo!”.
A jovem que vive apenas com a mãe em Portugal tinha noção que os seus pais e o resto da família, que se encontra no Brasil, não a iam aceitar. Admite que não se assumiu à sua mãe da forma que gostaria de ter feito, foi forçada a admitir que gostava de raparigas. A sua mãe confrontou-a depois de ter descoberto por outra pessoa que Letícia estava num relacionamento com uma rapariga. Até à data a jovem vivia uma vida dupla, em que fora de casa não tinha problemas em assumir a sua orientação sexual, mas em casa fingia ser algo que não era verdade. Mãe e filha ficaram sem se falar durante meio ano, mesmo vivendo na mesma casa. Letícia diz que se sentiu “como a maior desilusão” da vida da sua mãe e que tem a certeza que foi isso que ela sentiu. Admite que ainda não teve coragem de contar ao seu pai, sabe que o processo de aceitação vai ser tão ou mais complicado do que aquele que já vivenciou com a sua mãe e está a tentar evitar repetir a história.
A sua namorada está agora a passar por essa situação e ela está a dar-lhe todo o apoio que sabe que é crucial para superar um momento tão delicado como este. “Eu dou o apoio necessário à pessoa que tenho ao meu lado, não preciso que a família dela goste de mim.” este é o lema do amor na vida de Letícia. Considera que a mentalidade que os avós e pai transmitem aos mais novos pode ser mudada, ela pesquisou e mudou a sua. Hoje em dia só quem não quer é que não tem conhecimento das coisas, não há desculpas para se ser homofóbico e uma menina bonita não é um desperdício. Letícia admite que tanto ela como a namorada não têm paciência para ouvir alguns comentários relativamente à relação de ambas e por isso não são um casal muito romântico na rua.
A jovem de 19 anos e que é jogadora de futsal também está sempre a ouvir associações entre um desporto e a sexualidade, como se existisse uma regra que diz “Todas as raparigas que jogam futsal ou são lésbicas ou querem ser um rapaz.”. A sua mãe aceita a sua atual relação e isso para ela é algo muito importante, sentir apoio da família mesmo que para que isso fosse possível tenha demorado tanto tempo.
Ninguém deve ter medo de ser aquilo que é e tentar mudar o que sente, caso contrário não vai conseguir nunca na sua vida ser uma pessoa feliz e Letícia diz ser uma pessoa mais feliz agora.
Sofia não pode estagiar numa clínica devido ao seu visual
Sofia apercebeu-se que se sentia atraída logo aos 10 anos de idade “Era nova, eu sei”, disse ela em tom de brincadeira quando recordou essa altura. Apesar da idade prematura ela já sentia algo estranho quando se sentia pressionada a ser uma dona de casa através dos brinquedos que lhe ofereciam. Desde cedo que se começa a incutir o instinto maternal, da dona de casa e da mulher fútil e extremamente feminina, que só quer saber de saltos altos e maquilhagem. Sofia nunca usou os saltos altos da mãe nem usou a maquilhagem dela às escondidas, no entanto sempre brincou com o primo e com os brinquedos dele.
Disse que se sentiu aliviada quando percebeu que o que sentia não era errado. Por falta de coragem nunca se assumiu na totalidade à sua mãe. Depois de ser assumido como bissexual, quando na verdade se assume como lésbica, a sua mãe ficou uma semana sem lhe falar, mas depois tudo voltou ao normal.
Sofia sempre teve o estilo a que vulgarmente denominamos “Maria rapaz”, tem cabelo curto e usa roupas masculinas e já foi algumas vezes confundida com rapazes. Recorda-se que uma vez perdeu o cartão da escola e que quando a funcionária entrou na sala à procura da dona do cartão, ela colocou a mão no ar e a funcionária a ignorou, a professora teve e perguntar o porquê de ela estar a ignorar a aluna que estava à sua frente a afirmar ser a dona do cartão.
A jovem de 19 anos frequenta o curso profissional de técnico de secretariado e sempre teve noção que o seu visual, infelizmente, a podia condicionar quando quiser entrar no mundo de mercado de trabalho. Conta que em 2017, antes de começar a estagiar uma professora a avisou sobre o seu corte de cabelo e afirma que uma colega quase foi impedida de estagiar devido ao seu visual. Sofia e essa colega mudaram o local de estágio uma vez que a clínica para onde iam não as aceitava.
Catarina já ouviu comentários homofóbicos no grupo de amigos
A primeira vez que se sentiu atraída por raparigas tinha os seus 15 anos e afirma que se sentiu muito mal por isso. Não tinha a certeza se aquilo que sentia era verdade, algo bastante comum: fase de negação. Normalmente o primeiro local onde a pessoa não tem problemas de se assumir e se sentir à vontade é no grupo de amigos, no entanto, o caso da Catarina foi bastante diferente.
Ela admite que teve muito medo de falar com o seu grupo de amigos pois uma rapariga com quem se dava era muito conceituosa e homofóbica. O medo de não ser aceite no grupo de amigos deixou-a de pé atrás. Por incrível que pareça, o maior dilema para a Catarina não foi assumir-se à família. Ela diz que sempre teve uma boa ligação aos pais, que sabia que a iam aceitar quando lhes contasse que era bi. Não teve medo de ter essa conversa na altura que lhe sugeriram falar com eles. Apesar de a sua mãe ter ficado um pouco desiludida no momento, aceitou bem “isso deixa-me feliz” são palavras que Catarina diz por sentir desde sempre o apoio dos seus pais.
No trabalho não é 100% assumida, alguns colegas sabem e apesar achar que isso não iria mudar em nada a sua função e o seu profissionalismo prefere, para já, não se assumir ao padrão. As únicas experiências que teve com pessoas homofóbicas foram apenas coma sua “amiga” que já lhe fez comentários bastante desagradáveis, mas que Catarina prefere ignorar porque é uma pessoa muito resolvida consigo mesma.
Sara já foi gozada e perseguida por colegas da escola
Sara percebeu que gostava de raparigas relativamente cedo, tinha 14 anos quando isso aconteceu e sentiu-se uma pessoa muito estranha. Sentia-se deslocada do resto dos seus colegas da escola pois todos gostavam de pessoas do sexo oposto. A escola é sem dúvida um fator muito importante na vida de um jovem e é importante que todos estejam devidamente informados e capacitados para que tratem todos os alunos de igual forma.
Como Sara nunca teve uma boa referência de aceitação na escola isso originou que ela tivesse bastante receio de se assumir à sua mãe. Infelizmente não o fez no momento mais oportuno e até ao último mínimo quando confrontada com mensagens românticas que a mãe a tinha visto trocar, ela negou. Lembra-se perfeitamente desse dia. Foi a primeira vez que a sua mãe a agrediu física e verbalmente. Tinha apenas 15 anos. A sua mãe deu-lhe uma estalada e disse-lhe que ela não era mais sua filha, que Sara era uma merda. Foi um choque. Ela sentiu-se perdida e sem qualquer apoio. Não tinha a sua família e não tinha os seus amigos.
Atualmente, com 20 anos, Sara trabalha e afirma não precisar de se assumir, pois, o seu estilo masculino já mostra, à partida, a sua orientação sexual e nunca teve qualquer problema no seu local de trabalho. O momento mais marcante da sua vida, à exceção do episódio da sua mãe, foi o ódio gratuito que recebia quando frequentava o ensino básico porque se vestia como um rapaz. Recorda-se que chegaram a persegui-la depois de saírem das aulas. Foram momentos de puro terror e que podiam ser o argumento de um filme, mas que foi a realidade desta jovem durante anos.
Diogo não tem problemas em se assumir como transexual
Diogo nasceu no corpo errado, Maria Inês foi o nome que recebeu dos pais. Desde cedo percebeu que algo estava errado e que “aquilo que era não era o que sentiu ser”. Inicialmente não tinha conhecimento do termo transexual, mas com algumas pesquisas que fez percebeu o que era, um rapaz transexual. Afirma que é um processo complicado e que é preciso muita burocracia para começar a fazer os tratamentos. Diogo, já deixou de responder quando o tratam por Maria Inês, na escola pediu que o chamassem de Freitas. “É complicado” disse quando pensa na reação da sua família. Durante muitos anos a sua mãe não sabia lidar com a situação. É complicado explicar a algumas pessoas a sua situação quando lhe pedem o cartão de cidadão pois há muita discussão a transexualidade, a prova disso foi reação à lei aprovada no parlamento e revolta pelo nosso presidente da república. Emocionado conta que em 2018, pela primeira vez sentiu o apoio da sua família quando no seu aniversário recebeu um bolo que dizia “feliz aniversário Diogo.
Fábio Simão, presidente do MAPS, Movimento de Apoio à Problemática da Sida, e da Associação Xis, grupo que promove e protege os direitos LGBTI, afirma que ainda existe um grande estigma quando se ouve falar da homossexualidade que é logo associada ao HIV. Um seropositivo à partida é alguém que “fez alguma coisa que não se podia fazer” e esta ligação é muito íntima. As pessoas quando falam em VIH automaticamente associam a grupos de risco, como a homossexualidade e apesar de isto ser muito errado a própria comunidade internacional funciona assim e continua a dominar este grupo como um “grupo de risco”. Se formos ver os números mundiais e nacionais percebemos exatamente o contrário, as maiores taxas de infeção são sempre na população dita “normal”, heterossexual. Infelizmente o preconceito é muito grande e uma das formas de nos educarmos cada vez mais é desmistificar e é isso que o MAPS tenta fazer com o grupo de Teatro do Oprimido, “Os Surpreendentes Incalculáveis”.
No que respeita à identidade de género está mais do que provado que a questão da identidade de género começa muito cedo. Mas é de facto uma decisão muito séria, existem 1 ou 2 situações mundiais em que as pessoas se arrependeram e quiseram voltar atrás. O importante aqui é compreender-se que ao legislar-se uma matéria como a aprovação da mudança de género e de nome no cartão de cidadão aos 16 anos de idade, depois é necessário que na prática exista todo o apoio que é necessário para o jovem e para a família. Tanto o MAPS como a Associação Xis são a favor desta lei e acreditam que é um processo muito demorado e que, portanto, quando mais depressa uma pessoa trans começar a ter um suporte e um apoio mais facilmente conseguirá seguir a sua vida e conseguirá realizar-se pessoalmente. Não nos podemos esquecer de que é muito complicado para a pessoa trans mas também é muito complicado em termos familiares e a pessoa vai precisar do suporte familiar. Porque se não o tiver, com 16 anos perder o suporte é muito complicado. As leis são muito boas e funcionam muito bem escritas no papel, mas quando postas em prática deixam muito a desejar, a lei vem legislar todo o mecanismo de transição e o trabalho da comunidade é diferente.
O MAPS tem um projeto, o In-Company, que dá formação gratuita a entidades e falam sobre exclusão social e sexualidade com professores e com os funcionários para garantir que quem presta atendimento ao público esteja bem formado e consiga fazer o seu trabalho de forma exemplar. É necessário que as pessoas tenham consciência que é uma falta de respeito julgar o outro porque tem uma orientação sexual diferente da sua, porque isso é má formação e má educação.
É lógico que quando acontece num grupo de amigos alguém se assumir o grupo é muito unido e vai apoiá-lo, mas quando esse jovem pensa num adulto tem como referência um professor ou um funcionário e se algum destes dois o trata de forma discriminatória ele vai ganhar receio. Como é que ele vai chegar ao pé dos pais e dizer que é homossexual sem saber o que é que pode acontecer? Porque se ele se assume na escola e o funcionário lhe olha de lado ou comenta, ele não depende do funcionário, ele não vive com o funcionário. Mas no que respeita à família, ele vai depender da família, ele precisa da família. Porque é família, é amor! E ser rejeitado, principalmente por alguém que nos criou e que supostamente deve estar do nosso lado o resto da nossa vida é muito complicado. Portanto, todas as más referências, toda a falta de trabalho e de abertura que existe é um contributo para que as pessoas prefiram fechar-se, prefiram guardar isso e lutar contra, muitas vezes. Isto vai até situações de casamentos em que só um dia mais tarde é que ganham coragem, e é muito complicado nessa altura porque depois é vista como desonesta uma vez que viveu numa farsa.
Nenhum de nós deve ser apologista de ir para a rua gritar para as pessoas saírem do armário, devemos apologistas de dizer que não faz sentido existir um armário. Não é uma questão “esfregar na cara dos outros” a nossa orientação sexual, a questão é que cada um deve viver a sua orientação sexual sem se preocupar com isso. Tem de ser normal, em que a pessoa se sinta confortável.
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